--> Um grande prosador da
atualidade.
--> Suas obras falam muito sobre
a imigração judaica.
--> A medicina sua formação e a
classe média.
--> Influência importante nas
obras: Ele é um autor que aborda os questionamentos do ser humano sobre a sociedade
atual e tem um poder de concisão muito grande. Personagens fotografados por
dentro - análise psicológica.
--> O Scliar é contista,
principalmente; (poeta faz poesia; o prosador faz narrativa);
--> Conto ou romance;
--> Ele é do sul do Brasil, e
estava vivo até outro dia;
--> Publicava em jornais suas
crônicas, humor do cotidiano;
--> Houve uma época em que ele
usava sempre uma notícia recente, que saía nos jornais e transformava numa
crônica, aprofundando o perfil psicológico das personagens protagonistas, como
nesse "O cortador de nádegas"
Veja alguns textos:
Nós, o pistoleiro, não devemos ter piedade
(Moacyr Scliar)
Nós somos um
terrível pistoleiro. Estamos num bar de uma pequena cidade do Texas. O ano é
1880. Tomamos uísque a pequenos goles. Nós temos um olhar soturno. Em nosso
passado há muitas mortes. Temos remorsos. Por isto bebemos.A porta se abre. Entra um mexicano chamado Alonso. Dirige-se a nós com despeito. Chama-nos de gringo, ri alto, faz tilintar a espora. Nós fingimos ignorá-lo. Continuamos bebendo nosso uísque a pequenos goles. O mexicano aproxima-se de nós. Insulta-nos. Esbofeteia-nos. Nosso coração se confrange. Não queríamos matar mais ninguém. Mas teremos de abrir uma exceção para Alonso, cão mexicano.
Combinamos o duelo para o dia seguinte, ao nascer do sol. Alonso dá-nos mais uma pequena bofetada e vai-se. Ficamos pensativo, bebendo o uísque a pequenos goles. Finalmente atiramos uma moeda de ouro sobre o balcão e saímos. Caminhamos lentamente em direção ao nosso hotel. A população nos olha. Sabe que somos um terrível pistoleiro. Pobre mexicano, pobre Alonso.
Entramos no hotel, subimos ao quarto, deitamo-nos vestido, de botas. Ficamos olhando o teto, fumando. Suspiramos. Temos remorsos.
Já é manhã. Levantamo-nos. Colocamos o cinturão. Fazemos a inspeção de rotina em nossos revólveres. Descemos.
A rua está deserta, mas por trás das cortinas corridas adivinhamos os olhos da população fitos em nós. O vento sopra, levantando pequenos redemoinhos de poeira. Ah, este vento! Este vento! Quantas vezes nos viu caminhar lentamente, de costas para o sol nascente?
No fim da Rua Alonso nos espera. Quer mesmo morrer, este mexicano.
Colocamo-nos frente a ele. Vê um pistoleiro de olhar soturno, o mexicano. Seu riso se apaga. Vê muitas mortes em nossos olhos. É o que ele vê.
Nós vemos um mexicano. Pobre diabo. Comia o pão de milho, já não comerá. A viúva e os cinco filhos o enterrarão ao pé da colina. Fecharão a palhoça e seguirão para Vera Cruz. A filha mais velha se tornará prostituta. O filho menor ladrão.
Temos os olhos turvos. Pobre Alonso. Não se devia nos ter dado suas bofetadas. Agora está aterrorizado. Seus dentes estragados chocalharam. Que coisa triste.
Uma lágrima cai sobre o chão poeirento. É nossa. Levamos a mão ao coldre. Mas não sacamos. É o mexicano que saca. Vemos a arma na sua mão, ouvimos o disparo, a bala voa para o nosso peito, aninha-se em nosso coração. Sentimos muita dor e tombamos.
Morremos, diante do riso de Alonso, o mexicano.
Nós, o pistoleiro, não devíamos ter piedade.
Moacyr Scliar. Para gostar de ler, vol. 9. São Paulo, Ática, 1992.
MONÓLOGO DO APUNHALADOR
Moacyr Scliar
“Agora é guerra. Agora, sem
dúvida alguma, é guerra; guerra aberta, guerra feroz, guerra sem trégua e sem
quartel. Guerra suja, sim, mas poderia ser limpa? Não, limpa não poderia ser.
Neste caso, guerra limpa não existe.”
“Foram elas que começaram. As mulheres, digo. E isto há muito tempo. O que era
aquela história de Eva com maçã, senão o começo das hostilidades, mediante um
ato de exemplar perfídia? De lá para cá outra coisa não fizeram, senão nos dar
combate. E a nova padroeira delas, a Lorena Bobbit, é bem uma mostra disto.
Atacou um homem que estava dormindo e sem dó nem piedade mutilou-o no que tinha
de mais precioso. O que é isto? É terrorismo sexual. É a tática do terrorismo
usada na luta contra os homens.”
“Mas quem com ferro fere, com ferro será ferido. A nossa retaliação – a minha
retaliação, porque considero esta uma guerra pessoal – será imediata, eficaz e
implacável. Aliás, já comecei. E os resultados já estão aparecendo.”
“Devo considerar que de início hesitei um pouco. Não por temor, muito menos por
piedade. Eu tinha uma dúvida: onde atingi-las? Em que parte da anatomia? Rosto,
braços, seios? Tudo isto usam para nos provocar, para nos desestabilizar
mediante a mobilização de nossos baixos instintos. Mas eu não queria criar
vítimas, não queria que saíssem por aí exibindo cicatrizes, dizendo, olhem o
que aquele tarado nos fez, os homens não valem nada.”
“Mas foram elas que me deram a resposta. Como? com o fio-dental. Com as calças
justas. Era ali que eu deveria feri-las, naquilo que elas têm de mais
exuberante e provocador. Fez-se a luz, e eu me dei conta do motivo pelo qual as
mulheres hotentotes exibem aquele enorme traseiro; expandindo-se, aumentando a
sua presença no espaço – um espaço que deveria ser nosso, só nosso – elas
pretendem aos poucos afirmar o seu poder.”
“Não contavam com a minha faca vingadora. Como cavaleiro andante, galopo pelas
ruas, em busca do inimigo; e, como guerrilheiro da moral, golpeio de forma
sutil mas precisa. Elas já estão se queixando. Que se queixem. Não renunciarei.
A minha faca é o que tenho de mais precioso. A faca é o que faz de mim um
homem.”.
Os usos da casemira inglesa
(Moacyr Scliar)
Estou lhe escrevendo, Matilda, para lhe transmitir
aquilo que a contrariedade (para não falar em indignação) me impediu de lhe
dizer de viva voz. Note, é a primeira vez que isso acontece em nossos trinta e
cinco anos de casados, mas é uma primeira vez que pode também ser a última. Não
é ameaça. É constatação. Estou profundamente magoado com sua atitude e não sei
se me recuperarei.
Tudo por causa de sua teimosia. Você insiste, contra
todas as minhas ponderações, em dar a seu pai um corte de casemira inglesa como
presente de aniversário. Eu já sei o que você vai me dizer: é seu pai, você
gosta dele, quer homenageá-lo. Mas com casemira, Matilda. Com casemira inglesa,
Matilda. Que horror, Matilda.
Raciocinemos, Matilda. Casemira inglesa, você sabe o
que é isso? A lã dos melhores ovinos, Matilda. A tecnologia de um país que,
afinal, deu ao mundo a Revolução Industrial. O trabalho de competentes
operários. E sobretudo a tradição, a qualidade. Esse é o tecido que está em
questão, Matilda. A casemira inglesa.
Há muitos aspectos nesse problema, mas quero deixar de
lado tudo o que me parece menos significativo, inclusive o preço. Sim, o preço.
Você sabe que sou homem de poucas posses e que um corte de tecido importado
custaria bastante, mas vamos admitir que isso seja secundário, vamos omitir
esse detalhe; fixemo-nos na própria casemira inglesa, Matilda. E da casemira
eliminemos aquilo que possa entre nós gerar controvérsia – por exemplo, a
conveniência de dar a um homem que sempre se vestiu mal, que não dá a mínima
importância já não digo à elegância, mas à limpeza, algo tão sofisticado, tão
distinto. Não, não vamos discutir isso, não vamos discutir a sofisticação da
casemira. Vamos abordar outro tópico.
A duração.
Sabe quanto tempo pode durar a casemira inglesa,
Matilda?
Muito tempo, Matilda. Muito tempo. Disse-me o vendedor
– porque tomei o cuidado de colher essas informações, não estou polemizando
pelo prazer de polemizar, estou querendo que você raciocine comigo – que um
paletó de casemira inglesa, bem cuidado e ao abrigo de traças ( e como há
traças na casa de seu pai, Matilda, como há traças lá), pode durar anos,
décadas, séculos, talvez (ele falou em roupas guardadas desde o século XVIII,
mas talvez haja exagero nisso, vendedor é vendedor, mesmo que esteja vendendo
um fino artigo, como é o caso).
Isso, a casemira inglesa. Agora, seu pai.
Ele está fazendo noventa anos. É uma idade
respeitável, e não são muitos os que chegam lá, mas – quanto tempo ele pode
ainda viver? Sim, todos nós desejamos que ele chegue ao centenário, mas,
francamente, Matilda, você acredita nisso? A gente fala em cem anos porque é um
número redondo, é um espaço de tempo expressivo, um século, mas quantos
centenários há no mundo? E as chances de seu pai ser um deles. Aquela tosse, a
falta de ar... Não sei, não. Mas mesmo que ele viva dez anos, mesmo que ele
viva vinte anos, a casemira sem dúvida durará mais. E aí, depois que o
sepultarmos, depois que voltarmos do cemitério, depois que recebermos os
pêsames dos parentes, e dos amigos, e dos conhecidos, teremos de decidir o que
fazer com as coisas dele, que são poucas e sem valor – à exceção de um casaco
confeccionado com o corte de casemira que você pretende lhe dar. Você, em
lágrimas, dirá que não quer discutir o assunto, mas eu terei de insistir, até
para seu bem, Matilda; os mortos estão mortos, os vivos precisam continuar a
viver, eu direi. Algumas hipóteses serão levantadas. Vender? Você dirá que não;
seu pai, o velho fazendeiro, verdade que arruinado, despreza coisas como
comprar e vender, ele acha que ser lojista, como eu, é a suprema degradação.
Dar? A quem? A um pobre? Mas não, ele sempre detestou pobres, Matilda, você
lembra a frase característica de seu pai: tem de matar esses vagabundos. Essas
hipóteses todas estando esgotadas, você se voltará para mim e me pedirá,
naquela sua voz súplice: fique com o casaco. E eu terei de dizer que não ,
Matilda. Em primeiro lugar, eu sou muito maior que seu pai, coisa que ele
sempre fazia questão de me lembrar, chamando-me de gordo porco, você lembra?
Você achava graça, dizia que era brincadeira, mas eu sabia que no fundo ele
estava falando sério. Gordo porco, Matilda. Ouvi isso durante trinta e tantos
anos. Mas mesmo que o casaco me servisse, Matilda, eu não o usaria. Você sabe
que isso seria capitulação final, Matilda. Você sabe que com isso eu estaria
renunciando para sempre à minha dignidade.
O casaco ficaria pendurado em nosso roupeiro, Matilda.
Ficaria pendurado muito tempo lá. A não ser, Matilda, que seu pai dure mais
tempo que o casaco. Não apenas isso é impossível, como remete a uma outra
interrogação: e o seguro de vida dele, Matilda? E as jóias da sua mãe, que ele
guarda debaixo do colchão? Quanto tempo ainda terei de esperar?
Estou partindo, Matilda. Deixo o meu endereço. Como
você vê, estou indo para longe, para uma pequena praia da Bahia. Trópico,
Matilda. Lá ninguém usa
casemira.
(in: Contos
Reunidos)
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